segunda-feira, 31 de outubro de 2016

INVERNO





A estrada estava agradavelmente vazia quando a família Jones voltava de um proveitoso final de semana na Pousada Sunflower. Haviam também visitado juntos pela primeira vez a estação de esqui Rockfield. Era um fim de tarde claro. O fraco e amarelo sol se punha vagarosamente atrás da vasta planície recortada de vários lagos congelados. O radio do carro estava ligado e tocava baixinho a música Total eclipse of the heart de Bonnie Tyler, enquanto Paul tamborilava inconscientemente os dedos no volante, dirigindo devagar e cuidadosamente pela estrada molhada. Jane cantava baixinho algumas partes da música e lixava as unhas, aproveitando a claridade dos últimos raios solares. Um garotinho de quase três anos estava no banco de trás, dormindo serenamente em sua cadeirinha.
Jane olhou para o filho e sorriu. Sentia-se bem e feliz . O marido e o filho eram tudo o que ela podia chamar de família. Não havia mais ninguém além deles, com quem tivesse algum vínculo familiar.
A noite chegava, lançando escuras sombras pela estrada serpenteante. Vez e outra passava algum carro na direção contraria, agora com faróis acesos, suas luzes cintilando nas camadas de gelo acumuladas à beira da via. Não faltava muito para chegar à White River e Paul acelerava um pouco mais, aproveitando a estrada que estava agora seca.
Jane passou a mão nos cabelos castanhos e lisos de Paul, que lhe desciam na testa em uma discreta franja diagonal. O homem sorriu sem olhar  para ela, apreciando a carícia. Seus olhos eram um tom de azul claro acinzentado, extremamente penetrantes e a barba bem feita emoldurava seu largo maxilar. A mulher reclinou o banco para trás e deitou-se. Em pouco menos de uma hora estaria em casa e poderia descansar confortavelmente, então fechou os olhos e adormeceu.
Paul olhou rapidamente para a mulher ao seu lado. Era graciosamente bonita. Seus cabelos cacheados e castanhos fundiam-se com sua pele morena rosada. Seus padrões eram diferentes da grande maioria das mulheres daquele país, devido a sua descendência latina.
Faltava pouco mais de cinquenta quilômetros para a entrada de White River e nesse ponto a estrada ganhava muitas curvas. Então, depois de sinuosa curva, um animal grande e escuro estava no meio da pista. Paul apertou o pedal do freio com força e tentou desviar, mas o carro deslizou perigosamente, e girou de lado. O impacto foi inevitável e a porta ao lado de Paul afundou. O carro foi erguido no ar e capotou por duas vezes, parando de pé, na posição original.
Não deu para entender o que havia acontecido nos últimos cinco segundos. Jane sentia o corpo todo doer. Quando compreendeu, sua boca se abriu num grito que nunca foi ouvido. Algo quente escorria do lado de sua cabeça, descendo até seu queixo. Ela estava presa contra o painel do carro e sua cabeça virada para o lado de fora do veículo.
- Paul! - gritou ela, com lágrimas descendo pelo rosto - Paul, por favor.
O homem não respondeu. Então um som aumentou ainda mais seu desespero. Um menininho começou a chorar.
- Jack! Jack! Ai meu Deus! Jack!
Jane tentou empurrar para trás, com o braço que conseguia movimentar, o que a prendia, mas foi inútil e só fazia aumentar a dor. Então ela viu o espelho retrovisor quebrado, pendurado precariamente do lado de fora do carro. Com muito esforço ela passou o braço pelo buraco com cacos estilhaçados, onde há poucos instantes existira um vidro e puxou o objeto. Com dificuldade tentou localizar o filho pelo reflexo do espelho, mas conseguiu vê-lo ainda preso ao cinto de sua cadeirinha. O teto amassado quase tocando a cabeça do garotinho que ainda chorava, mas aparentemente estava bem.
Jane chamou em prantos novamente pelo marido, mas ele continuava a não responder. Então ouviu o som de um carro que se aproximava. O veículo parou e Jane ouviu vozes.
- Vá buscar ajuda! Rápido! - soou urgente  a voz de uma mulher.
Segundos depois o motor do carro roncou e foi sumindo. A dona da voz murmurou algo que Jane não compreendeu.
- Por favor me ajuda - disse Jane. O desespero transparecendo nitidamente em sua voz.
Uma senhora de uns cinquenta anos apareceu do lado do carro onde Jane estava. Seu rosto também estava assustado.
- O meu filho. Tira ele do carro - pediu suplicante.
- Fica tranquila, moça, - a voz da senhora soou calma - seu filho está bem. Meu marido foi buscar ajuda.
- Meu marido não me responde - continuou Jane.
- Ele deve ter desmaiado com o impacto. Fique tranquila, a ajuda já vai chegar.
Ao longo de dez minutos que mais pareceram uma hora, Jane viu chegar mais alguns carros que paravam próximo dali. Então ouviu uma sirene tocar se aproximando e luzes vermelhas intermitentes brilhavam ofuscantes no seu pequeno raio de visão.
Quanto tempo passou Jane não conseguiu calcular,  mas agora, o som do metal sendo desdobrado e rasgado enchia o lugar. Pessoas vestidas de branco e outras de vermelho circulavam pela escuridão, dando e executando ordens.
Os bombeiros que cortavam o ferro retorcido finalmente conseguiram abrir espaço suficiente para retirar Jane, que agora estava com o pescoço imobilizado. Quando a colocaram na maca, Jane não pode ver nada além dos rostos das pessoas que a empurravam e o céu escuro e nublado. Quando chegaram à ambulância, Jane ouviu a voz do pequeno Jack e percebeu que ele já estava lá dentro. Então inclinaram a maca para fazê-la entrar no veículo e Jane sentiu que lhe roubavam a vida. Ela viu Paul. Os olhos do homem  estavam fechados e sua boca entreaberta como se estivesse dormindo. Uma coisa sólida, branca e sangrenta havia rasgado seu braço direito, de dentro para fora, que agora pendia molemente ao seu lado.

Medo e desespero se misturaram dentro de Jane e ela gritou. Gritou coisas ininteligíveis. Gritou entre lágrimas o nome de Paul. Mas Paul não podia ouvir. Paul não estava mais ali.

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Um comentário:

  1. Este é o meu primeiro texto aqui no blog. Compartilhem. Dêem aquela força na divulgação! Abraços...

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